Aumentar acesso de pessoas negras e periféricas é desafio atual, explicam especialistas
Se no passado a camisinha era a principal forma de proteção contra o HIV, hoje o Ministério da Saúde (MS) e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e AIDS (Unaids) adotam a chamada prevenção combinada. Ela inclui, além da camisinha, a testagem periódica, o próprio tratamento de pessoas infectadas – já que quem possui carga viral indetectável não transmite o vírus – e as Profilaxias Pós-Exposição (PEP) e Pré-Exposição (PrEp). Tudo disponibilizado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A PEP é a utilização da medicação antirretroviral após possível contato com o vírus, como em relações sexuais. Deve ser iniciada em até 72 horas e mantida por 28 dias. Já a PrEp é o uso da medicação por não-infectados em situação de alto risco. “São as chamadas populações-chave: casais sorodiferentes, gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas trans e trabalhadoras do sexo”, esclarece o consultor em HIV e doutor em saúde pública Salvador Corrêa.
Programas trouxeram ganhos
A disponibilização da PrEp no SUS desde 2018 foi um avanço, como aponta a diretora e representante no Brasil do Unaids, Claudia Velasquez. “Somos o único país da América Latina que distribui gratuitamente. Segundo o MS, são 33 mil usuários, sendo 85% homens gays e HSH; 6,3% mulheres cisgêneras e 3% de mulheres trans. Do total, 42% têm de 30 a 39 anos”.
O médico infectologista e pesquisador em prevenção ao HIV Rico Vasconcelos explica que o interesse pela PrEp aumentou, mas a desigualdade de acesso preocupa. “Quase 40% dos usuários estão no estado de São Paulo. Assim como na PEP, as dificuldades aumentam dependendo do bairro paulistano que você mora, se sair da capital paulista para o interior e, depois, para outros estados”, analisa. “No Nordeste, há estados onde apenas as capitais têm o serviço. Ou seja, afastar-se do grande centro gera vulnerabilidade”, resume.
Como a PrEP exige exames periódicos para monitorar a saúde do usuário, um ganho foi expandir o autocuidado das populações-chave. “Elas são marginalizadas e mais discriminadas na saúde pública”, esclarece Corrêa. Já a PEP existia no Brasil desde 1996 para acidentes ocupacionais de profissionais de saúde. “Foi expandida gradativamente como profilaxia após estupro, transmissão vertical (de mães para bebês), casais sorodiferentes até chegar às relações sexuais em 2010”, narra Corrêa.
De acordo com Vasconcelos, o uso mensal da PEP no estado de São Paulo, com 44 milhões de habitantes, varia entre duas a quatro mil pessoas. O caráter emergencial do serviço e o receio de julgamento moral são empecilhos. “Há inúmeros relatos de que a pessoa foi mal tratada e ouviu sermão do médico ou profissional ao buscar o serviço” relata o infectologista.
Barreiras a derrubar
Referência nos dois programas, a cidade de São Paulo registrou 25% menos casos de HIV entre 2019 e 2017 (de 3.889 para 2496 casos). A queda foi de 30% em relação à aids (doença causada pelo vírus) entre 2015 e 2019 (2.421 para 1.623 casos).
Porém, expandir o acesso da PrEp e PEP às populações-chave em todo o Brasil ainda é um desafio. “São as que mais se infectam e que também mais morrem por aids, principalmente se negro, jovem e periférico”, compara Vasconcelos. O Relatório de Monitoramento de Profilaxias do HIV PrEp e PEP de 2020 mostrou que 57% dos usuários de PrEp brasileiros se declararam brancos ou amarelos; 30% pardos; 12% pretos e 0,3% se declararam indígenas.“O desafio é fortalecer os diretos sociais, sexuais e humanos da população negra e periférica, indígenas e quilombolas”, completa Corrêa.
Entre as medidas, Velasquez cita o respeito ao nome social de pessoas trans no SUS e abandonar terminologias estigmatizantes vinculadas ao HIV. “É necessário promover serviços de saúde que sejam zero discriminação e estigma”.
Houve a autorização para farmacêuticos do SUS prescreverem as medicações e, em São Paulo, um projeto piloto de PEP por telemedicina e com delivery de medicação está em teste. “Hoje, a PEP possui menos efeitos colaterais, combatendo o mito de penitência após relação sexual desprotegida”, completa Vasconcelos.
Moralismo é empecilho
Os protocolos clínicos do MS explicam como deve ser o atendimento de PrEp e PEP, mas não obrigam municípios a implementarem. “Dependem da boa vontade da gestão”, diz Vasconcelos. Segundo ele, preconceito e questões moralistas e religiosas de gestores públicos atrapalham. “A religião de uma pessoa faz outras se infectarem. Em 2018, foi aprovada uma agenda estratégica contra esse problema, abandonada no governo Bolsonaro”, diz o médico.
Os programas de DST/AIDS também sofreram com a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos (EC 95/2016), que congelou os investimentos por 20 anos. Em 2022, levantamento do Estadão via Lei de Acesso à Informação (LAI) apontou que o governo federal aplicou 1% da verba em campanhas de prevenção em comparação aos valores de 20 anos atrás.
“Ao longo das décadas, ONGS que faziam prevenção popular em favelas, comunidades e nichos fecharam as portas. E recursos financeiros são necessários para a compra de novos antirretrovirais devido às patentes dos medicamentos”, adverte Corrêa. Além disso, as poucas campanhas de prevenção excluíram gays, trans, profissionais do sexo ou tiveram veiculação restrita.
Futuro dos programas
Diversificar acesso e medicações é esperado para o futuro da PrEp e Pep no Brasil. “Há dois projetos pilotos de PrEp injetável mensal com carbotegravir no país, para adultos e adolescentes. No mundo, estuda-se implante de islatravir e seu uso na PEP com único comprimido mensal; assim como uso semestral do lenacapavir em tratamento”, informa Vasconcelos. “Porém, nada adianta a ciência evoluir e a questão humana, não”, adverte.“Uma reposta ao HIV é necessariamente coletiva e social, devendo ser acessada por todos”, conclui Corrêa.